ARTISTAS FEMININAS RESSIGNIFICAM A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA PINTURA

  Panmela Castro é uma das artistas de maior notoriedade na cena contemporânea brasileira

Artistas contemporâneas ressignificam a representação feminina na pintura

Nomes como Panmela Castro, Piscila Rooxo e Lia D Castro exploram a diversidade de corpos e linguagens em suas telas que correm galerias e museus no Brasil e no exterior

Por 

Eduardo Vanini

05/03/2024 04h30  Atualizado há um mês

Ao descrever as singularidades da Vênus de Sandro Botticelli, o italiano Ernst Gombrich observa, no livro “A história da arte”: “É tão bela que não nos apercebemos do comprimento incomum de seu pescoço, ou o acentuado caimento de seus ombros e o modo singular como o braço esquerdo se articula ao tronco”. Assim como na famosa tela de 1485, os corpos femininos, pintados majoritariamente por homens, foram distanciados da realidade em nome de uma beleza idealizada, ao longo de séculos. Uma configuração que, mais do que nunca, muda de maneira notória nas galerias e nos museus, conforme artistas mulheres alcançam protagonismo e exploram, entre variados motivos, os próprios corpos.


“As pinturas produzidas por homens têm um olhar fetichista e estereotipado”, observa Panmela Castro, uma das artistas de maior notoriedade da cena contemporânea brasileira. “Quando uma mulher é autora, ela caminha por outros propósitos e espaços. Naturalizamos o corpo. Pintamos aquele que usamos para a vida, para andar na rua, ir à praia ou amamentar.”

A tela “Paula Maria, irmã”, de Priscila Rooxo — Foto: Divulgação
A tela “Paula Maria, irmã”, de Priscila Rooxo — Foto: Divulgação

A artista carioca tem entre as produções a série “Vigília”, em que passa longas horas em seu ateliê com as figuras retratadas, a maior parte delas mulheres. Foi assim que pintou um de seus quadros mais famosos, o de MC Carol. Na tela, a cantora de funk aparece de costas, usando uma lingerie que ela própria escolheu. “É sempre um encontro íntimo e tem esse propósito de quebrar tabus”, afirma Panmela, citando também a preocupação com a diversidade. “Não escolho as modelos. Tenho o conceito de ‘deriva afetiva’, no qual deixo o acaso ser sujeito. Então, pinto desde a menina branca do Leblon à jovem da favela.”

A atuação de artistas como ela, afirma a curadora Luana Fortes, professora dos cursos de Artes Visuais da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), rompe com uma pecha antiga que recai sobre as mulheres nesse universo: o papel de musa. “Mais do que nunca, elas ocupam o lugar de quem pinta, e não de quem é pintada”, nota. “E, por meio de seus trabalhos, abrem caminhos para falar de muitos assuntos, como a própria linguagem. Afinal, há muita complexidade nessas produções.”

A artista Priscila Rooxo — Foto: Giovanna Lanna
A artista Priscila Rooxo — Foto: Giovanna Lanna

Ao abrir um panorama histórico sobre o tema, Rosemeri Conceição, historiadora de arte e professora do Parque Lage, lembra que mesmo as mulheres do Norte Global demoraram a alcançar esse espaço de autoria. Algo denunciado, desde a década de 1980, pelo grupo ativista nova-iorquino Guerrilla Girls. “Menos de 4% dos artistas nas sessões de arte moderna do Metropolitan Museum of Art (em Nova York) são mulheres, mas 76% dos nus são femininos”, elas comunicaram, em um de seus clássicos cartazes. Em 2017, em performance no Museu de Arte de São Paulo, mostraram como algo semelhante se dava na instituição brasileira: “Apenas 6% dos artistas do acervo em exposição são mulheres, mas 60% dos nus são femininos”.

Ao longo de todos esses anos, lembra Rosemeri, mulheres do mundo inteiro foram privadas de suas carreiras artísticas em função do machismo ou até mesmo sofreram o apagamento de suas produções. E é exatamente por isso, na opinião dela, que muitas têm se debruçado sobre as próprias histórias na hora de produzir as obras. “Como nos ensinou (a autora americana) bell hooks, a arte cura”, cita. “E, neste momento, temos artistas falando sobre os nossos afetos e temáticas que cortam os nossos corpos, como a violência obstétrica. São nomes como Silvana Mendes, que pega imagens de mulheres negras objetificadas, do século XIX, e as cobre de pássaros e flores para devolvê-las o carinho que não receberam.”

A mineira Jade Marra pinta afetividades lésbicas — Foto: Eduarda Jofily
A mineira Jade Marra pinta afetividades lésbicas — Foto: Eduarda Jofily

Levar novas narrativas aos museus é algo central no trabalho da carioca Priscila Rooxo. No quadro “Paula Maria, irmã”, ela pintou a própria irmã, que foi mãe aos 14 anos. A jovem aparece num momento de descontração, com o filho, já com 4 anos, no colo e uma long neck de cerveja na mão. “A gravidez precoce é um problema nas zonas periféricas, mas também é importante não vermos apenas a tristeza e a dor dessas histórias. Por isso, quis representá-la assim, a partir de uma abordagem alegre”, explica.

Priscila já pintou também a mãe e as amigas em telas que correm galerias e museus, como o MAR. Sempre que pode, leva as personagens representadas às exposições. “Entenderem-se enquanto obra de arte mostra a elas o quanto podem ser vistas como gostariam, como algo nobre e produzido a partir das próprias perspectivas. Não é forçado ou pejorativo.”

Márcia Falcão e a obra "O grande vidro" — Foto: Gonzalo Gaudenzi
Márcia Falcão e a obra "O grande vidro" — Foto: Gonzalo Gaudenzi

Na cena que se desenha, a pluralidade de narrativas e abordagens reflete exatamente no que aparece nas telas. A mineira Jade Marra, por exemplo, usa a “linguagem do corpo” para falar sobre afetividade lésbica em suas pinturas. “As mensagens são passadas através das poses, da tensão e da disposição. É uma veia que salta, um osso marcado sob a pele”, descreve. A partir dessa premissa, as figuras humanas raramente aparecem por inteiro. “Gosto muito de representar as mãos. Elas têm a capacidade de retratar sensações de um modo mais vigoroso do que se pintasse uma expressão facial.”

Já a carioca Márcia Falcão busca, em seus trabalhos, ir além da questão anatômica. Em uma de suas séries mais famosas, “Yoga psicológica”, ela usa o movimento para levar o corpo a uma quase abstração. “É uma maneira de falar sobre o assunto com certa liberdade”, afirma. De onde vem esse interesse? “Fui criada em Cabo Frio e sempre havia muitas pessoas vestidas apenas com roupas de praia à minha volta. Então, quando acesso essas memórias, é como se esses corpos formassem uma dança na minha cabeça.”

Obra inspirada no brutalismo, de Lia D Castro — Foto: Divulgação
Obra inspirada no brutalismo, de Lia D Castro — Foto: Divulgação

Graduada em Pintura pela UFRJ, ela também enxerga em seu trabalho um aspecto que considera “quase subversivo”. Muitas vezes, quando está no ateliê, pintando, vêm à sua mente soluções de artistas como Francis Bacon, Diego Velázquez e Francisco de Goya. Como se vê, todos homens que dominaram as artes visuais no passado. “Acho engraçado, porque estou usando isso para falar de maternidade e opressão estética, questões que eles não atingiram. E é por isso que considero subversivo. Uso soluções que, talvez, foram utilizadas para objetificar o corpo da mulher. Mas, no meu caso, a nudez serve para mostrar um corpo real, que não esconde falhas.”

A artista Lia D Castro — Foto: Rafaela Kennedy
A artista Lia D Castro — Foto: Rafaela Kennedy

A paulista Lia D Castro também traz referências históricas para as produções contemporâneas. Mulher trans, ela se inspira no conceito arquitetônico do brutalismo para falar, em suas telas mais recentes, sobre as mudanças no corpo, como a cirurgia de redesignação sexual, pela qual passou em setembro. “Entender o corpo como paisagem e arquitetura é importante para compreendê-lo como uma questão cultural também. E essa cultura está viva”, defende a artista. “A minha vagina custou R$ 90 mil, o meu rosto, R$ 60 mil. Mais de dez amigas cometeram suicídio na fila da cirurgia de redesignação sexual pelo SUS. Ou seja, são procedimentos urgentes, questão de saúde pública.”

Vênus renasce a cada dia, em corpos múltiplos.


Fonte:https://oglobo.globo.com/ela/gente/noticia/2024/03/05/artistas-contemporaneas-ressignificam-a-representacao-feminina-na-pintura.ghtml

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